A evolução da inflação ao consumidor e os indícios de que a economia começa a ingressar em uma trajetória de recuperação podem colocar em xeque, em algum momento, a insistência do Banco Central em manter o dólar acima da linha dos R$ 2. E essa perspectiva deve se intensificar no próximo ano, principalmente se o Federal Reserve (Fed, o banco central americano) embarcar numa nova rodada de estímulos monetários. Isso porque uma nova injeção de liquidez no sistema financeiro tem potencial para inflar ainda mais os preços das commodities, o que pode jogar combustível no já cauteloso cenário para a inflação brasileira.
Em tese, essa pressão inflacionária poderia ser suavizada por uma queda do dólar. Por ora, no entanto, a visão é de que ainda é cedo para falar em uma nova estratégia no câmbio, uma vez que os sinais de retomada ainda são frágeis, a despeito da aceleração recente em alguns índices de preço - impulsionada em parte pela desvalorização cambial. Na visão dos especialistas, garantir o crescimento é o objetivo principal do governo, que age convencido de que o dólar a R$ 2 é "estimulador da atividade".
A questão, dizem especialistas, é que a desvalorização do real, de 7,43% no acumulado do ano, não só afeta a inflação como potencializa o efeito nocivo da alta dos preços das commodities. Dessa forma, à medida que a atividade ganhar tração, o câmbio poderá ser um instrumento de peso no combate à inflação.
Um bom termômetro desse quadro é o desempenho dos preços das commodities em diferentes moedas. Levantamento feito pelo Valor Data confirma que, em reais, o preço da soja negociada em Chicago, por exemplo disparou 57,41% em 12 meses, bem acima da valorização do dólar australiano, dólar canadense ou o do peso mexicano.
Não por acaso, nesse mesmo período, a inflação no Brasil está mais salgada do que nos outros países. O IPCA, que baliza o regime de metas de inflação do governo, subiu 5,2%, enquanto no México o índice de referência de preços avançou 4,4%; no Canadá, 1,3%; e na Austrália ainda menos, 1,2% (este último considerando 12 meses até junho).
O especialista em câmbio da Tendências Consultoria, Bruno Lavieri, chama atenção para um provável aumento do "pass-though" - como é conhecido o repasse potencial da variação do dólar aos preços. Segundo ele, em condições "normais", esse repasse ainda é baixo, com o IPCA aumentando em 0,05 ponto percentual no período de um ano a cada 1% de valorização do dólar, mas já deve estar maior, dado que as commodities sobem sem a contrapartida da valorização cambial.
De modo geral, profissionais do mercado ainda consideram cedo para afirmar que o BC pode afrouxar a vigilância no câmbio neste ano, diante do sinal dado na terça-feira ao tentar puxar o dólar para cima por meio da oferta de swaps cambiais reversos e das indicações ainda inconsistentes de recuperação da atividade econômica doméstica. No entanto, confirmando-se a retomada da economia no ano que vem, poderia haver uma nova onda de alta da inflação, cujo combate voltaria, assim, ao topo das prioridades do BC. Dessa forma, aumentam as chances de a autoridade monetária utilizar a taxa de câmbio como um amortecedor da alta dos preços.
"O rompimento do teto da meta (de inflação) seria o elemento que poderia provocar uma mudança na postura do Banco Central com relação ao câmbio", diz Lavieri. "Uma vez que, por enquanto, esse risco é baixo, o BC não deve flexibilizar o controle do câmbio", diz. "O câmbio passou a ficar administrado há apenas alguns meses. Até esse resultado se traduzir de forma consistente numa atividade mais forte levará mais algum tempo", diz, justificando a visão de que, por ora, o governo não deve alterar a condução da política cambial. A última vez que o IPCA rompeu o teto da meta foi em 2003, ano em que o limite de inflação era de 6,50% e a taxa saltou 9,30%.
Na avaliação do economista-chefe do Deutsche Bank do Brasil, José Carlos Faria, apesar de sinalizarem a indisposição do BC em deixar o dólar cair abaixo de R$ 2, as intervenções também podem sugerir que a autoridade monetária quer limitar a oscilação para algo entre R$ 2 e R$ 2,05, reduzindo riscos de choques nos preços.
Com base nisso, o economista não descarta que a inflação em alta pode levar o BC a não conseguir defender o piso de R$ 2 no próximo ano. "No entanto, acreditamos que os riscos a nosso cenário base ainda sejam de performance abaixo do esperado da economia em 2013, devido à possivelmente fraca demanda global e a contínuas inconsistências na política", diz.
Em relatório divulgado nesta semana, a Nomura Securities também cita a possibilidade de o governo deixar o real se apreciar para conter pressões inflacionárias, especialmente no primeiro semestre de 2013. Mas a casa já vê espaço para uma queda do dólar ainda neste ano, projetando taxa de R$ 1,98, o que significa uma queda de cerca de 2% ante os níveis atuais.
O ex-diretor de Assuntos Internacionais do BC Alexandre Schwartsman, alerta que a inflação também representa um problema para 2013 e que há riscos de desafiar o perigoso limite dos 6%. Mas, para ele, não está claro se, caso isso ocorra, o Banco Central agiria elevando os juros ou deixando o real se valorizar. "Acho que o câmbio teria um efeito mais imediato, mas não sei como o BC agiria", diz. "A grande dificuldade é que a autoridade monetária não deixa claro qual é o seu objetivo: ter câmbio desvalorizado ou juro baixo", diz.
A volta da discussão a respeito de um afrouxamento monetário ("quantitative easing") pelo Fed coloca combustível na preocupação com a inflação que já vem afetando o mercado e explica inclusive a alta das taxas futuras de juros. Isso porque a perspectiva de injeção de liquidez no sistema financeiro motiva os investidores a buscarem ativos não-financeiros, como ouro e petróleo. Uma vez que as matérias-primas entram no cálculo dos custos na cadeia produtiva, a alta desses produtos tem potencial para elevar os preços em toda a economia, reforçando a pressão inflacionária.
"Acho que o Fed jogou mais combustível no problema da inflação, que pode ser um problema seriíssimo no ano que vem, com o IPCA rompendo os 6%", diz um experiente profissional. "Todas as vezes que o país enfrentou choque de commodities, o câmbio valorizado contribuiu para anular seus efeitos sobre a inflação. Agora, o câmbio está jogando contra", acrescenta.