O Plano Real acabou com a temida hiperinflação, que chegou a 80% ao mês, e a derrubou para índices nunca imaginados. Em 1998, o custo de vista registrou alta de inacreditável 1,65%. Mesmo assim, no acumulado dos 18 anos de vigência do mais longevo pacote econômico da história do país, as famílias viram os preços subirem muito: 305,9%, conforme cálculo do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (IPCA), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), usado pelo governo para fixar as metas oficiais de inflação. Significa que, na média, as despesas cotidianas ficaram quatro vezes maiores entre 1994 e 2012.
Ainda que boa parte dessa inflação acumulada se deva aos primeiros três anos da implantação do Real, o Brasil convive com taxas acima de patamares toleráveis, se comparado aos países de economia desenvolvida. Em 2011, o custo de vida subiu 6,5%, a maior alta em sete anos, depois de oscilar entre 3,1 e 5,9%, o que mostra a gangorra de variação dos preços. A meta definida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) para até 2014 é de 4,5% ao ano, considerada alta inclusive por integrantes do atual governo. Está acima das taxas de países vizinhos, como Colômbia e Chile, onde o objetivo a ser perseguido pelos bancos centrais é de 3% anuais.
Uma análise mais profunda do comportamento do IPCA nos 18 anos do Real revela que o governo é o maior culpado pelo elevado peso da inflação no bolso dos consumidores. Foram os preços administrados pelo setor público, que incluem as tarifas e contratos, os que mais subiram. Gás de cozinha, telefone, energia elétrica, passagens de ônibus, combustíveis, planos de saúde, aluguéis e escolas. Tudo subiu muito além dos índices divulgados pelo IBGE. Em alguns casos, como o do gás encanado usado pelas famílias, o salto foi de 821,3%, quase três vezes a inflação oficial. Não à toa, a classe média reclama que não sente no bolso o alardeado controle dos preços. São esses produtos que têm o maior peso no orçamento dos lares brasileiros.
Mas não foi só. Os custos dos serviços pessoais — empregado doméstico, cabeleireiro, manicure, serviços bancários — também passaram a morder uma parcela maior do orçamento das famílias desde 1º de julho de 1994, quando o real entrou em circulação. Na média, ficaram 540% mais caros. Portanto, a conta é simples: se os preços administrados não tivessem aumentado tanto, a inflação acumulada seria bem menor.
Herança maldita
Passadas quase duas décadas, a dificuldade para domar a alta do custo de vida vem de uma herança da era da hiperinflação, que é a indexação da economia, a vinculação do reajuste de vários contratos e tarifas públicas à inflação passada. Quando o Real foi implantado, o governo desindexou em parte a economia, mas manteve, por lei, vários itens do orçamento atrelados a índices de preços, mesmo que os indicadores não refletissem a oscilação de custos. Mesmo setores que não são monitorados acabaram mantendo a inflação como parâmetro, segundo analistas. Caso dos serviços pessoais, dos planos de saúde e da educação.
Nos contratos dos setores privatizados, como telefonia, energia elétrica e saneamento, foi assegurada correção anual pelo IGPs (Índices Gerais de Preço), calculados pela Fundação Getulio Vargas (FGV). O problema é que essas taxas refletem custos do atacado, como de commodities — produtos agropecuários e minerais — negociadas em dólar no mercado internacional, de grande volatilidade. Por isso, os IGPS caem de repente e também sobem muito.
A justificativa para a indexação das tarifas públicas foi a necessidade de oferecer garantias a empresários que estavam investindo em setores recém-repassados à iniciativa privada. "A sociedade pagou uma conta alta durante muito tempo. Até 2002, nos primeiros oito anos do Real, talvez a indexação dos contratos fizesse sentido, por causa da grande volatilidade do câmbio, que dava uns saltos e poderia desequilibrar as contas das empresas. Mas, há uns 10 anos, não tem mais sentido", afirma o economista Simão Silber, professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (USP). "A indexação, resquício dos períodos de hiperinflação, continua sendo um grande problema para a economia", acrescenta o economista Thiago Curado, da Tendências Consultoria.
Alimentos e vestuário
Apesar de alguns preços administrados, como os de energia e de telefonia, terem diminuído o ímpeto por reajustes elevados nos últimos anos, ao se adotar outros parâmetros para a correção dos contratos, como a produtividade das empresas, ainda há uma indexação total e parcial em muitos segmentos. "Sobrou uma inércia inflacionária significativa no país. O grande desafio, daqui por diante, é romper com ela", afirma Simão Silber.
Para Thiago Curado, a indexação distorce a inflação. Ele cita o caso dos aluguéis de imóveis. "Qual o sentido de subirem porque o IGP-M (Índice Geral de Preços de Mercado subiu?", questiona. Ele reconhece que o mercado imobiliário tem se ajustado, feito acordos e praticado reajustes diferenciados que não seguem necessariamente a inflação, mas o IGP-M está nos contratos e ainda é aplicado em vários casos.
Os aluguéis e as taxas embutidas no serviço, como de condomínio e de água e esgoto, estão entre as maiores altas do período do Real: 697,6%. A maior parte desse aumento, porém, ocorreu até 1996, com alguns picos entre 2002 e 2004. Os alimentos e vestuário despontam, no entanto, como os produtos que menos subiram. Em 18 anos, as frutas, na média, ficaram 2% mais baratas. Os legumes aumentaram 48,4%, para uma inflação total de 305,9%. A alta de roupas e calçados ficou entre 170% e 208%, respectivamente, desde 1994. Aparelhos de TV, som e equipamentos de informática registraram correção de apenas 40% em 18 anos, graças à forte queda do dólar, que barateou a importação de peças e equipamentos.
Na avaliação dos especialistas, é a concorrência, principalmente dos importados, que fez com que os preços não subissem tanto. "A melhora da renda e o aumento da competição favoreceram os consumidores", afirma a técnica do IBGE Irene Machado.
Mínimo reforçado
De 1994 até hoje, com o controle inflacionário, o salário mínimo voltou a ganhar status e seu poder de compra foi reforçado. Se no ano de implantação do Plano Real, o salário correspondia a apenas 10,97% do ganho mensal necessário para o brasileiro arcar com as despesas básicas constitucionais (alimentação, moradia, saúde, educação, vestuário, higiene, transporte, lazer e previdência), em 2012 alcança 26,09%, segundo cálculos do Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas Socioeconômicas (Dieese). "Podemos perceber dois fatores: o aumento do número de consumidores e a melhoria na distribuição de renda. Quem recebe o mínimo hoje tem maior poder de compra", afirma Alexandre Guimarães, doutor em economia política e professor da PUC Minas e da Fundação João Pinheiro.